domingo, 21 de março de 2010

Relatos de um Delegado da II CNC

A Segunda Conferência Nacional de Cultura - ocorrida em Brasília - contou com Delegados (representantes) Culturais e um destes que já havia representado Salto na Conferência Estadual de Cultura foi eleito nesta última para representar o Estado de São Paulo. A seguir, seu relato:

Conferência Nacional de Cultura"Chegar a Brasília de avião, com a possibilidade de avistar cá de cima o desenho exato de um outro avião lá em baixo, retirado da prancheta de um arquiteto que, há pouco mais de 50 anos, imaginou que o país merecia uma capital que simbolicamente alçasse um vôo inexorável rumo ao progresso e ao desenvolvimento, é, por si só, uma experiência emocionante.

Impossível não me recordar das palavras da jornalista Neide Duarte para o projeto FRUTOS DO BRASIL: “De avião para avião, nos olhamos. Assim é que enxergamos a cidade. Assim é que chegamos a Brasília”. Pois bem, manhã de 11 de março. Chego para a II CNC (Conferência Nacional de Cultura).

Brasília se me apresenta avassaladoramente bela em suas linhas, retas ou curvas, parecendo uma revolucionária obstinada a nos fazer lembrar que o vôo imaginado e desenhado na prancheta do arquiteto visionário nada tem de impossível. Basta atentarmos para a nossa brava gente que, teimosamente, insiste em acreditar que o país pode, sim, se tornar uma nação. E para Brasília acorreu, formando um exército de mais de 1400 delegados, contabilizados convidados, setoriais, conferências municipais, estaduais e livres. Uma babel de sotaques, ritmos, pulsações, vestuários, cores e raças. Uma gente bonita, diversa, plural.

Na abertura oficial, concorridíssima, as presença luxuosas do presidente e de diversos ministros de estado, dando a medida certa da importância que a Cultura ganhou na agenda política – tomara, definitivamente. No quesito atrações artísticas, esse delegado saltense destaca a apresentação especialmente comovente do artista multicultural Antonio Nóbrega, modelo exemplar de quão inócua é a discussão que propõe antagônicas as culturas popular e erudita, e que foi capaz de tirar lágrimas abundantes ao transformar Johann Sebastian Bach, alemão, em João Sebastião Ribeiro, brasileiro, traduzindo-o em passos de danças genuinamente brasileiros. Um deleite. Uma emoção.

Na primeira manhã dos trabalhos, uma plenária lotada assiste a palestra de um escritor e gestor público cultural português, Antonio Pinto Ribeiro, demasiada acadêmica, muito embora conceitualmente rica. Chico César, com seu jeito matuto e nordestino de ser, trata de colocar a CNC nos conformes, trazendo para a mesa a diversidade cultural brasileira e a importância das cidades no processo político e civilizatório.

À tarde, divididos por eixo, e na impossibilidade de acompanhamento de todos, participo do Eixo II – Cultura, Cidade e Cidadania. Tenho uma explicação para essa escolha: é nesse eixo que se encontram três das quatro principais pautas a que esse delegado se propôs defender, baseado na representatividade de Salto e de minhas labutas diárias, a saber: reconhecimento da participação da sociedade civil nos Conselhos Municipais, Estaduais e Federais de Cultura; validação do programa Cultura Viva; e atenção às políticas públicas voltadas para os deficientes. A quarta bandeira: a necessidade premente de inventariar-se e do registro de memórias culturais, infelizmente, constava de outro eixo. Restou conversar, em grupo ou individualmente, com delegados(as) do eixo desta proposta, na tentativa de sensibiliza-los. Ao final, ver-se-á que essa proposta tinha a simpatia de muitos, acabando por estar entre as 32 prioritárias da II CNC.

No terceiro dia, já em regime de defesa de propostas, as coisas realmente esquentam. É preciso capacidade de articulação e argumentos razoáveis de defesa ou reprovação. Nervosismos afloram. Há quem “viaje na maionese”, defendendo o indefensável ou o particular, em detrimento ao coletivo. Também há quem, em sendo “artista”, comporta-se como tal, como se em um “palco” estivesse e só restasse à platéia a certeza de que melhor fariam ter-se inscritos para a Mostra Artística, torcendo mais ainda para que tivessem suas propostas indeferidas, tamanho o mal gosto de suas performances. Paciência. Hora de respirar fundo e não perder o foco.

Depois de um dia intenso, quando somente 15 (de 60) propostas passariam para a plenária final, às 23h50 sai o resultado final do Eixo II. Cansaço, alívio e alegria: as três propostas estão na lista das aprovadas.

Não basta. Agora é hora da construção de uma forte defesa delas na plenária final. Mais articulações, conversas, divergências. A manhã de domingo, 14, último dia da II CNC chega. E com ela a certeza de que a hora é essa. Esse delegado tenta se desdobrar para participar das discussões dos grupos que defendem também as bandeiras iniciais. Sim, o inventariado e a memória também passaram.

Escrevo o texto de defesa da proposta 83, referente ao programa Cultura Viva e aos Pontos de Cultura. Participo da redação conjunta da defesa da proposta dos conselhos culturais e da questão dos deficentes. Infelizmente, não cnsigo me articular mais fortemente com o grupo que defende os inventários e a memória cultural.

Me emociono com a defesa que mãe Beth de Oxum (Olinda – PE), texto meu às mãos, faz da proposta 83. Efusiva e convincentemente, mexe com boa parte da plenária que, em pé, aplaude, ovaciona e canta, ratificando nacionalmente a importância dos Pontos de Cultura. Bingo. A proposta vence com 600 votos no final.

Igualmente emocionante é acompanhar a defesa da proposta 129, a que trata dos direitos básicos de acessibilidade, fruição e produção cultural dos deficientes. Tristeza. Certamente pela falta de um movimento mais participativo, numeroso e aguerrido, a proposta fica pelo meio do caminho e não passa.

Já as outras duas propostas, relacionadas aos conselhos e ao inventariado e memória, têm suas defesas baseadas em argumentos técnicos, racionais. Pouca emoção causa, mas obtém maioria e também passa.

Resultado final: 75% de aprovação. Três, das quatro propostas inicialmente defendidas, entre as 32 prioritárias. Saldo mais do que positivo.

Sinto-me em paz com a minha consciência. Penso na Conferência Municipal, nas pessoas que dela participaram. Relembro o boicote do governo estadual quanto ao transporte dos delegados paulistas. Um estresse. Felizmente, o governo voltou atrás, não em tempo de eu já ter conseguido a garantia de minha participação. Obrigado secretário da Educação, Wilson Caveden. Obrigado vice-prefeito, Juvenil Cirelli, Obrigado Poder Público municipal.

Vim. Duelei. Articulei. Falei. Ouvi. Vou-me embora enriquecido.

Impossível deixar de registrar a emoção de ver imagens ou de ouvir relatos de comunidades amazônicas que, pela importância creditada à sua identidade e sua cultura, passam três, quatro dias singrando rios em barcos pequenos, somente para poder garantir que seus conterrâneos, muitos deles habitando áreas longinquas e isoladas, possam ter o direito sagrado da manifestação cultural, seja em audiovisuais, cênicas, danças populares, griôs, circos, crenças, ou até mesmo simplesmente para a instalação de cornetas, espalhadas e fixadas em árvores nativas, para que toda a comunidade possa ouvir a programação diária de sua rádio comunitária. Ou a luta quase insana de uma delegada catarinense, lenço verde sobre a cabeça, escondendo o efeito devastador da quimioterapia, defendendo a sua cultura local, sem se esquecer da importância de ações mais abrangentes. Ou, ainda, o desapego de funcionários públicos graduados do Ministério da Cultura, despidos de vaidades, correndo para lá e para cá, tomando providências, várias delas braçais, para o bom andamento da II CNC.

Enfim, a II CNC acabou. Suas propostas prioritárias nortearão as políticas públicas culturais pelos próximos 10 anos.

Por fim, há vida, sim, para além da política intensa. Pessoas também se divertem, dançam, cantam, declamam poesias, bebem, se abraçam, se beijam, namoram durante a Conferência. Ainda bem."

Por Marcos Pardim

Arlindo G. Nicolau - Artista Plástico, Designer Gráfico, Webdesigner e Educador. Estudou Artes Plásticas e Pedagogia na Unicamp. Colabora com o Espaço Cultural Barros Junior e com o Fórum Permanente de Cultura de Salto/SP.

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